quarta-feira, 9 de maio de 2007

Cenário

Sentada no muro... Lá estava ela a pensar em sua doce e alegre vida. Relembrava da infância dourada; dos sonhos guardados no mais profundo do seu ser: uns realizados, mas a maioria não. Pensava em tudo o que um dia quisera, que um dia vivera, que um dia chorara. Mas acima de tudo pensava nas pessoas que por sua vida passaram. Pessoas vivas, felizes, inteligentes e amorosas. Pessoas dignas de serem lembradas e guardadas dentro de si. Contudo, houvera pessoas más, insignificantes, indignas... Muitas, cruéis. Mas estas não mereciam mais do que umas meras reflexões... Outros aspectos, sim, estes mereciam reflexões aprofundadas e conclusivas...

Sentada no muro... Esforçava-se para permanecer lá, olhando o mundo do alto, com seus pensamentos, sem, no entanto, fazer parte dele. Olhava e refletia... Refletia e olhava, ziguezagueando por mundos paralelos, em um incógnito jogo de “o mundo e eu”. Nesta atividade, acabava por descobrir em si mesma complexos mundos: ora cristalinos, ora instáveis, ora negros, ora mundanos... Ora brancos, ora invisíveis... Ora mundos completos, ora mundos fragmentados.

E a vagar ali ficava, sentada por horas a fio no limiar daquele muro. Sonhava acordada; vivia a plena realidade em sonhos, mas não saia dali. Olhava para um ponto específico... Olhos noturnos, graves, cheios de significado. Quem a observasse teria a sensação de que ela procurava por algo. Algo que não se encontrava na superfície, algo além daquele ponto mirado. Algo indizível e indeterminável para alguém “extra-seu-mundo”.

Passavam-se dias... E ela no mesmo lugar... Inerte, indiferente ao que se passava em seu redor. O centro do seu interesse era ali: algo que se encontrava em si. Algo maior que qualquer entendimento humano. Uma coisa específica e singular, própria dela mesma.

Houve um tempo em que alguns com ela se preocupavam, mas fora tempo passado. Hoje era comum aquela cena: ela e o muro, ela e o tempo, ela e ela mesma. Não havia sombras de tristeza em sua face; no entanto, não havia sinal de sorrisos. Lágrimas não vertiam de seus olhos, mas músicas também não saíam de si. Ela e ela mesma... Sempre... Eternamente. O maior amor que tivera, uma coisa meio narcisística.

Encontrou no muro a sua própria beleza. Endurecera... Agora era parte dele. Nunca tivera coragem de se lançar ao desconhecido, como era o seu propósito inicial. O ponto visado, nunca ninguém saberá... O que se sabe é que ela não deveria ter se entregado tanto a si... Pois não há mundo mais atraente e prisionário do que o mundo dentro de nós.

4 comentários:

Sessyllya ayllysseS disse...

Vassago, Vassago... Li o texto como se estivesse lendo uma "autobiografia metafórica de mim mesma"... E me arrepiei várias vezes diante de construções lingüísticas tão bem elaboradas, que de tão belas quase estabelecem verdades inquestionáveis... Que bom que você compartilha conosco essas preciosidades de dentro de você... Parabéns!!! Beijos!!!

Ciro disse...

Também me sinto honrado de vc compartilhar tudo isso conosco, Reginaldo.
Belo texto, bem legal de se ler... a mulher se tornando igual ao muro! Uau, cara! Muito massa meeeesmo! Fiquei imaginando uma vez que vc declamou um poema na sala,e de repente tirou a camiseta, do nada! Hahahha!! Fiquei imaginando vc fazendo isso de novo, e recitando esse texto. Ia ficar deveras legal!
Abraço!

Felipe Carvalho disse...

Nossa !!! É arrepiante mesmo !!! E não tive como não me identificar!

É interessante o modo como alguns conseguem se fechar em seus mundos (por mais terríveis que estes sejam) e como outros não suportam viver longe da vista alheia, do convívio social (pessoas que não dão conta de suportar suas próprias verdades, talvez).

"...procurava por algo. Algo que não se encontrava na superfície, algo além daquele ponto mirado..."

Como são raros aqueles que "perfuram" a superfície, que vasculham em meio às meras "aparências" e mergulham no além-primeira-impressão, além-senso-comum, além-todos-fazem.

Nota 10 !!!

Bruno Carvalho disse...

Fala Regis!

Belíssimo texto cara!! De primeira qualidade!! Não é fácil sequer perceber nossos próprios erros, sequer encontrar a si mesmo!
Muito bom! Parabéns!