sexta-feira, 2 de novembro de 2007

A morte do chapeiro

Por Ciro M. Costa



- Está morto, pessoal. Pediu que eu lhe comprasse um pacote de Doritos, e depois que ele devorou o saquinho inteiro, ele morreu. O chapeiro está morto.
- Uma pena. – disse Máicou. – Ele fazia o melhor x-tudo do mundo.
É impossível não pensar no passado de coisas boas, quando alguém se vai para o outro mundo. E fora no que comecei a pensar, quando Máicou fez esse comentário sobre o x-tudo... me lembrei daquela terça-feira à noite, quando estávamos na praça onde o sol se punha...

- Rapaz, esse é o melhor x-tudo que já comi na vida. – ele disse, comendo o lanche como se fosse um jacaré fazendo passeata para o palhaço Bozo, em tempos de bonança (nada a ver).
- E por que esse é o melhor do mundo? – perguntei.
- Oras, veja isso! Olha só que capricho! Que sabor! O cara realmente coloca todos os ingredientes aqui! Eu fico cheio 3 dias quando como um desses.
- Tem certeza disso? Eu conheço um lanche melhor do que esse!
- Eu duvido!
- Amanhã eu lhe mostro.
Antes que essa noite terminasse, o chapeiro preferido de Máicou ainda se sentou em nossa mesa, e contou várias histórias sobre sua vida, desde a vantagem de ter dormido com várias mulheres (assunto o qual sempre detestei), até sua vida na prisão (a qual também contou com muito orgulho). De certa forma, aqueles assuntos me davam uma indigestão danada.

No dia seguinte, fomos até a faculdade. Desde que havíamos nos formado em Engenharia anos atrás, eu e Máicou não tínhamos voltado lá.
- O que estamos fazendo aqui? – ele perguntou. – Veio buscar algum documento?
- Não. – respondi. – Vim cumprir o trato sobre o x-tudo!
- Hein? Em uma faculdade?
- Sim. Na cantina.
Nos tempos de faculdade, Máicou jamais havia entrado na cantina. Sempre achou tudo caro por lá. Realmente, por se tratar de faculdade particular, o pessoal achava que todo mundo era rico por ali e metia a faca. Mas as vezes compensa pagar um pouco mais caro em certas coisas. É pra gente mesmo, não é verdade?
Assim que entramos, o chapeiro Juca estava conversando com duas senhoras na mesa:
- Com licença, senhora – ele disse, amavelmente. – Posso fazer uma coisa?
- Tudo bem. – disse a senhora, meio receosa
Juca pegou a bolsa a qual mulher tinha pendurada no ombro, e a colocou sobre a mesa gentilmente. Então ele disse:
- Não precisa ficar segurando a bolsa agora, não é? Agora é hora de comer tranqüilamente, relaxar... esqueça os pesos da vida por um instante. Aprecie essa hora de lanche.
A senhora o agradeceu sorridente.
Juca se virou e viu a mim e Máicon. Me deu um grande abraço:
- Mas você, hein? Quanto tempo não vem aqui! Esqueceu dos pobres? – ele perguntou.
- Que nada, falta de tempo mesmo! Juca, quero que conheça meu amigo Máicou. Com acento no ‘A’ e com ‘U’ no final, hahahahhahahaha!!!
- Muito engraçado! – disse Máicou. – Prazer, Juca. Meu amigo aqui disse que você faz o melhor x-tudo do mundo. Eu vim conferir!
- Oras, é pra já! – disse Juca, vestindo o avental.
Enquanto Juca fazia o lanche, contou sobre sua vida. De como sentia que algumas pessoas ainda tinham racismo (ele era negro), mesmo que negassem. Falou também de sua dificuldade do dia a dia, a criação dos dois filhos, de como morava longe dali e mesmo assim ia de bicicleta todas as noites para trabalhar. Sempre o vi voltar tarde da noite de bicicleta pra casa, deveria ser duro.
Máicou, que era ‘manga verde’ ainda em muitas coisas, lançou a pergunta:
- Eu não entendo... você tinha tudo para ser um cara estressado, nesse emprego em que pouco se ganha, alunos arrogantes pedem lanche a toda hora, vai e volta de bicicleta naqueles fins de mundo... e continua mantendo esse sorriso no rosto? O que há de errado com você?
Então, Juca o encarou (sem deixar de fazer o nosso lanche) e disse:
- Errado? Comigo? Nada, meu amigo. Eu é quem pergunto: o que há de errado com o mundo? Hum? Por que vou me estressar com coisas tão pequenas? Coisas banais? Perder um dia desses, só porque enfrento algumas dificuldades? E daí? Isso vai adiantar? Não, não vai! Sabemos que não adianta, e mesmo assim não perdemos uma só oportunidade de “perder a Brahma”. Eu é quem pergunto: por quê?? E sabe o que é pior? Ninguém sabe... ou não gosta de responder.
Juca virou os hambúrgueres, e continuou:
- Veja você, alguns estudantes chegam aqui, exigem que eu tire uma batata ou um bacon do lanche deles, só porque isso vai deixar o lanche mais barato! Tudo bem, sei que nem todos são ricos, mas... um pouco de bacon? Um pouco de batata? Só por uns centavos a menos? Oras, o que é isso? Essa vida é curta demais! Devemos fazer e comer do que gostamos enquanto estamos aqui! É tudo pra você, cara! Quem nessa vida é mais importante do que você? Me diga? Pra que poupar do que é só pra você? Por que nos tiramos as coisas por avareza? Por que nos fazemos tão mal? Se sabemos que cigarro é prejudicial, pra que manter a pose e continuar com isso? Se o chefe está chato hoje, por que se estressar com ele tão facilmente, sabendo que é isso o que ele quer? Por que... putz! Olha eu fazendo perguntas sem respostas de novo! Hehehehe!!
Eu sinceramente, esperei que Máicou fosse criticar Juca pelas poucas palavras de “auto ajuda”, mas, ao invés disso, ele ficou em silêncio. Jamais ele havia visto alguém tão humilde, simples e bom quanto Juca. Bom, eu também achei que esse tipo de gente não existia mais no mundo.
Depois de terminarmos o lanche (que não era nem metade do que havíamos comido no dia anterior), nos despedimos de Juca e viemos andando a pé pela rua. Máicou disse:
- Você tinha razão, amigo. Esse foi o melhor x-tudo que já comi na vida.
Eu sabia que não era, mas entendi bem o que Máicou quis dizer.

E agora, depois de todos esses anos, Juca se foi. Assim como todas as pessoas que fazem o bem, teve sua curta vida. Mas deixou sua mensagem que, mesmo sem querer, foi bem interpretada. Pelo menos por mim.

Ele só não deixou um pouco de Doritos pra mim, mas tudo bem!

9 comentários:

Ciro disse...

Sabem, dizem que Elvis Presley ficou "manso" depois que voltou da guerra. Ficou mais humilde, mais religioso, começou a cantar mais músicas sobre Deus... muitos criticaram, mas ninguém sabe o que um homem passa no meio de uma guerra. Só quem esteve lá pra saber.

É o que acontece no dia-a-dia, quando se supera guerras terríveis, guerras interiores. As pessoas descobrem um outro lado da coisa, o lado bom de tudo. O lado que elas procuram pra se acalmar, pra se tranquilizar. Um lado que talvez nunca procurassem se não tivessem passado por aquela dificuldade... então, abençoada seja essa dificuldade pra fazê-las enxergar a "luz no fim do túnel".

Esse tipo de texto que fiz, não será lido por muitos. Primeiro, porque é meio comprido. Segundo, porque não tem graça. Terceiro, porque traz as famosa "auto-ajuda". Mas hoje eu estava almoçando sozinho em um restaurante barato, e me lembrei desse cantineiro (que no texto se chama "Juca" e felizmente ainda não morreu,e hoje ainda é jovem) da faculdade e sobre as coisas que ele falava quando fazia o lanche. Essa história é "meio real", e o "Máicou" dela sou eu mesmo.
Então, pensei: por que não dedicar um texto a ele? Só por que alguém vai criticar? "Ciro agora está manso! Está querendo escrever auto-ajuda".
Bom, dane-se! Quem venham as críticas de tudo quando é jeito. Gosto de recebê-las. Se durante minha vida não me faltou coragem para perder meu tempo com bobagens e coisas que me fizeram "perder a Brahma", não vou ter medo de escrever esse tipo de coisa agora.
Mal não faz e, acreditem, pessoas como o chapeiro merecem ser ouvidas.

Além do mais, já estou cansado de não me importar com que o outros também não se importam.

Um grande abraço!

Bruno Carvalho disse...

Ow, filhão! Pára de fazer comentário do seu próprio texto quando achar que se arriscou demais, ou quando faz algo diferente! Ciro bravao, Ciro manso, Elvis roqueiro, Elvis manso, enfim, sempre haverá quem odeio um ou outro e sempre haverá quem goste dos dois, ou só de um gênero! A "Auto ajuda" depende da interpretação de cada um. E nunca um texto de auto ajuda pode ter o sinônimo de ruim. Exite a auto ajuda boa, e a ruim, enfim... chega de viajar...
Eu, particularmente passei por uma viagem durante a leitura do texto. No começo ri pra caramba, depois o texto me levou para o lado humano da coisa, das comparaçoes entre o físico e o espiritual. Nem preciso falar o quanto me identifiquei com o texto! Muito bom mesmo!
E o desfecho nem se fala!
Você está de parabéns! Já gostava da fase do "Ciro manso", agora da fase do "Ciro mais manso" eu ainda gosto ahahahahhahahah! O bichão deve ter ficado puto!!!
Muito massa cara! Muito bom meeeeeeeeeeessmo! Nota 10!

Excelente homenagem ao nosso amigo Júlio! Realmente o melhor! Deu até vontade de ir lá qualquer dia desses!!

Abraço forte irmão!

Carlos Filho disse...

Massa o texto...Ainda ouço muito o: "É pra vc cara!" hahahahahaha
Se saindo muito bem nos textos de ultima hora, hã? (cutucadinha na pança)

Rafael disse...

cara valeu mesmo na hora vi que era o julio bonzao mesmo que saudades e texto assim?mas ta valendo ficou bom tambem hehehe abraços

Sessyllya ayllysseS disse...

O problema não é a auto-ajuda, Ciro, mas o que vc faz com ela. No seu caso, toda vez que vc escreve algo assim diferente, eu percebo que vc é muito versátil: consegue escrever em diversos gêneros e tipos de textos com a mesma criatividade, segurança e talento.

Gostei do "recado" do Juca-Júlio... Nunca freqüentei a cantina da faculdade, mas certamente teria gostado de ouvi-lo pessoalmente. Então, ainda bem que vc escreveu essa história, afinal, quantas pessoas, assim como eu, terão a oportunidade de conhecer essas dicas tão legais para a vida, né mesmo?!

Muitos parabéns!
Bjos!!!

Pietro disse...

E tu ainda queria o Doritos do coitado seu FDP

jsaisiajsjaijisauhsauhsauhsauhsauhsa

belissimo texto e ótima reflexão Ciro, esse foi 10

Felipe Carvalho disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Felipe Carvalho disse...

Ei, não foi o Doritos que matou o cara, você está se esquecendo de dizer que ele o comeu tomando um copo de leite junto... Hahahahahahahhahaha

Bacana mesmo o texto! Eu sempre fui e continuo sendo a favor do que muitas pessoas depreciativamente chamam de "auto-ajuda"! Por que textos com alguma mensagem, alguma lição positiva ou mesmo que nos dêem alguns "tapas na cara" não podem ser levados a sério? Há espaço e momentos para tudo nessa vida e, como o Bruno e a Cecília disseram, o problema não está nos textos ou na idéia, mas no emprego que fazemos deles! Assim como na literatura clássica e consagrada, há coisas boas e ruins nos textos "motivacionais". E cabe a nós, leitores, fazer a distinção! Afinal, nem o mais belo e inflamado discurso de Martin Luther King (que poderia ser considerado "auto-ajuda" por muitos) terá apreço ou serventia se não estivermos abertos para a autocrítica, o questionamento e sobretudo a reforma íntima!

E apesar de (ou justamente por) se tratar de uma "auto-ajuda", queria dizer que gostei bastante, que ainda me recordo do Júlio e que você está de parabéns! :D

P.S.: Mas sem fazer apologias do bacon, das fritas, da gordura trans, da coca-cola e da cultura fast-food em geral! Se é "para você", melhor que saibamos o que estamos fazendo conosco! hehehe

Flavio Carvalho disse...

Ôpa,

muito bom máicou!

hehehehehe