“No fundo de uma lagoa
Há um cavalo sonhando.”
Denise Emmer
Ele era estúpido e delicadamente antipático. Possuía olhos negros e estatelados, ao mesmo tempo profundos. Às vezes um tanto melancólicos. Os cabelos, sempre despenteados, tinham um ar desconfortável, desajeitado de se olhar, embora fossem também suaves. A gravata vermelha, sempre suja, era ridícula a primeira vista. Mas na segunda já se tornava antipática. Não tinha nenhum anseio na vida, sendo seu único passatempo passar horas folheando seu antigo álbum de selos. De vez em quando olhava para o chão, talvez procurando algo, talvez pensando no passado. Quase não tivera passado. Ainda olhando para o chão, por vezes dava um meio sorriso. O gato, surpreso, continuava deitado sobre o tapete da sala. Contentava-se em responder ao sorriso do homem com um destemperado miado. Às vezes um ficava olhando para os olhos do outro, simultaneamente, como se um repugnasse e entendesse o outro. O gato falava com o olhar e miava expressões.
O gato dormia, quase sempre, sob o efeito da própria antipatia. Ali não se sabia qual dos dois era o mais antipático, e cada vez que ele folheava aquele álbum, o gato dava uma olhada de rabo de olho, virando a cara logo em seguida, num gesto de desprezo, indiferença e antipatia. Mesmo assim eram amigos. Eram amigos mesmo com a gravata vermelha. Mesmo com o antigo álbum de selos, sujo e cheirando a mofo verde. O que os unia era a antipatia.
Tarde da noite chegava, enfim, a hora do jantar. Ele, sentado à mesa, degustava desesperadamente uma folha de alface. O gato olhava aquele gesto com horror; tinha nojo de ver o homem comendo uma simples salada de alface tão indelicadamente. Enquanto assistia àquela cena, esperava por sua vez, sentado sobre o tapete da cozinha. Às vezes esquecia-se da folha de alface de seu dono e ficava entretido com a própria antipatia. O gato tinha nojo do tapete da cozinha, mas ainda assim ficava sobre o tapete da cozinha. O homem continuava comendo. Depois de mastigar cada bocado, limpava a boca com a gravata vermelha, ao mesmo tempo olhava antipaticamente para o gato, que fingia não dar importância. Mas por dentro tremia de raiva, e, para acalmar-se, esticava o corpo para frente e voltava raspando as unhas no chão de cimento grosso. Nada mais podia fazer, senão depositar mais um pouco de antipatia em seu coração de gato. Assim os dias seguiam, um antipatizando as ações do outro.
Manhã de domingo, o sol já forte derramava raios maravilhosos e de imensa poesia sobre aquela casa, uma casa parecida com outra qualquer. Mas pouco importava o sol, pois o gato e o homem não sabiam o que era poesia. Aquela casa não era outra qualquer, nada poderia ser comum, sobretudo o homem e o gato. Acordaram juntos e antipáticos. A luz que penetrava a janela do quarto era a primeira causadora de mais uma dose de antipatia que subia pelo peito, quase saía pela boca e depois voltava pela espinha, terminando num calafrio estonteante. O gato sentia o mesmo do vidro fechado da janela. O homem abriu a porta já meio apodrecida da cozinha escura, sentiu o vento. O vento soava-lhe como ventania antipática.
Com olhos um pouco fechados, começou o dia procurando meios para passar um café. O gato botou a cara para fora da cozinha, seus olhos encolhidos por causa da luz do sol, um miado comprido apareceu. Um miado comprido e carregado de antipatia, preguiça e fome de algo que não fosse humano. Pensou se saía ou não para o quintal, decidiu não sair. O quintal de repente pareceu-lhe antipático, como as flores de cravo-de-defunto eram antipáticas. Sentiu antipatia de si mesmo porque não fora acostumado a comer ratos. Decidiu esperar pelo desjejum. Decidiu esperar pelo homem.
Ele, o homem, abriu aquela geladeira manca, repleta de água e pimenta. Levou uma das mãos ao fundo e apanhou, atrás de um vidro de pimenta malagueta, um copo de coalhada. Verteu-a sobre um pires e o colocou sobre o tapete que ficava na porta da cozinha, onde o gato, sentado, esperava. O gato olhou para o pires, olhou em seguida para o homem semi-acordado, reparou a gravata vermelha ainda suja de pasta de dente e resolveu provar aquilo. Comeu tudo. Desejo não, necessidade. E tinha um gosto antipático, um gosto de todo domingo. Sentiu antipatia de se deixar submeter a tudo aquilo, miou e foi se deitar sobre o tapete da sala. O homem já estava lá, sentado na poltrona, dando continuação àquela rotina estúpida de folhear aquele já antiquado álbum de selos.
Quando o entardecer chegou perto, as primas apareceram. Era costume de domingo. Vieram à casa do homem para comer da coalhada. Todos se sentaram à mesa, cada um ostentando um copo daquela coalhada azeda e, ao mesmo tempo, antipática. O gato via tudo aquilo com náuseas, um sentimento infernal, quase vomitando de nojo da cara que as primas faziam ao comer daquela coalhada, sem nada dizerem, com toda a atenção voltada cada uma para seu próprio copo. Mas o gato via também quando o homem limpava a boca na gravata vermelha e depois sorria, rapidamente retornando à sua antipatia facial. Depois daquele lanche, cada uma das primas se despediu e tomaram todas o caminho de volta. Nem se atreveram olhar para o gato. (O gato ficava contente com aquele gesto, pois não precisava do olhar antipático daquelas moças, se é que eram realmente moças)
Coisas demais já lhe causavam antipatia dentro daquela casa, sobretudo aos domingos, no café de todas as manhãs, e também nos dias mais comuns. Era o reconhecimento do que havia de ser feito em contrário ao que deveria ser vivido por cada um da casa, fosse o gato ou o homem.
Depois que as primas se foram, o homem juntou as louças sujas dentro da pia e continuou seu trabalho. Dirigiu-se até a sala e sentou-se em sua poltrona favorita. Levou as mãos até a mesinha de centro e pegou o álbum de selos. Pôs-se a folheá-lo. O gato veio logo em seguida e deitou-se sobre o tapete, perto da poltrona. Olhou para o homem. De tempos em tempos os dois trocavam olhares. Às vezes o homem segurava a gravata vermelha e fazia um sorriso antipático. Então o gato virava a cara para o outro lado e, com um jeito todo cheio dele mesmo, miava. Um panapaná passou em frente à janela.
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