sábado, 10 de fevereiro de 2007

Golpe baixo

por Felipe Carvalho

_ Espere, Calisto, achei um papelzinho aqui que pode nos dizer alguma coisa...

Sento à mesa e a fome se levanta.
Falam comigo e nem sei o que digo.
Rezo para que o dia passe logo,
Mas ele se faz de desentendido.

_ Putz, quem será o infeliz? Não está assinado...

_ Está sim! Vê aqui embaixo, bem pequeno?

_ É mesmo! Déboro Catarino... Putz, que nome, hein?

_ Olha só na tela do computador!

É... Mais uma noite se foi e eu fiquei. A cada dia sou um e a cada dia me sinto mais perdido por não ser mais o mesmo. Às vezes parece que sou vazio por dentro e que nunca terei a oportunidade de dizer o que penso. Mas se sou vazio por dentro, então o que penso? Outras vezes a impressão é a de que tudo conspira a meu favor e o mundo se torna pequeno para me suportar, mas isso é mais raro de acontecer e, quando acontece, sinto que não tenho habilidade para lidar com a situação e tudo acaba num relâmpago. São tantos “eus” conflitantes, incoerentes e desconexos, que minha mente se tornou um labirinto, cheio de becos medonhos e escusos.
Quando penso que as mudanças estão tomando lugar, vejo que estou atado a uma rotina passiva e materialista.
Como é difícil encontrar quem enxergue o mundo com um olhar ao menos semelhante ao meu, que dê valor a determinadas coisas e despreze outras, assim como eu.
Sinto-me preso a um nicho de provas e experimentos, no qual sou testado e julgado com os olhos mais exigentes e ao mesmo tempo mais medíocres do planeta! Acho que não vai ser mais possível...


_ Acho que o rapaz curte esse lance de escrever...

_ Triste demais! Mas o que é que não vai ser mais possível?

_ Não sei, cara, vamos sair daqui que os vizinhos já devem estar estranhando a barulheira...

_ Verdade! Não quero nem sonhar em voltar para a cadeia... Mas eu fiquei preocupado com o Déboro, pôxa, olha só o quarto dele, ele é um cara muito simples!

_ Sim, sim, eu sei! Esse ambiente escurecido, nostálgico... Mas vamos zarpar, Guido, acho que não podemos fazer muito por ele...

_ Um bom começo seria não furtar seus bens, você não acha?

_ Ah, meu amigo! A essa altura do campeonato o cara nem tá preocupado com essas coisas! Precisamos é arranjar um bom par de pernas e peitos para ele! Isso sim é caridade, brother!

_ É, talvez ele nem dê falta dessas coisas. Você se tornaria amigo dele?

_ Claro que não, cara! Esse cidadão é muito estranho, "depressivaço"! Em dois tempos ele me puxaria pra fossa!

_ Tudo bem, se você não se importa, eu me importo! E voltarei aqui amanhã! Quero compensar essa apropriação indevida de bens com alguma coisa boa!

_ Eu, hein! Vá com Deus então, fera! Eu tô fora! Já me queimei muito no pedaço!

_ Então, falou! Nos vemos na boca!

_ Olha lá, hein!

E os rapazes tomaram rumos distintos...

7 comentários:

Flavio Carvalho disse...

Muito legal felipão!

Sessyllya ayllysseS disse...

Oba, sou a primeira a comentar!!! (Dã)

Bão, Felipe, é o seguinte: não sei o que ficou melhor, o texto em si ou o texto dentro do texto (no computador do Déboro).

Muito bem sacada essa situação de os ladrões descobrirem que a vítima é um escritor "depressivaço" e um deles até se sensibilizar com isso. Idéia muito original, cara, parabéns!!!

Adorei o trecho: "Às vezes parece que sou vazio por dentro e que nunca terei a oportunidade de dizer o que penso. Mas se sou vazio por dentro, então o que penso?". O Déboro é bom mesmo, de verdade, embora seu nome seja meio escroto. Esse trecho representa, com perfeição, grande parte do que sinto.

Congratulações pela excelente produção!!! Surpreendente como de costume!!! Bjos!!!

Ciro disse...

"Precisamos é arranjar um bom par de pernas e peitos para ele! Isso sim é caridade, brother!". Hahahahahahhaha!! O interessante desse texto é a diferença de personalidade entre os dois personagens. Aliás, entre os três.

Felipe, vc está se saindo nisso melhor do q eu pensava. Antes de começarmos com esse blog, eu só tinha por base poemas seus como "Tudo de ruim" e "A Marcha de Peres Brown" (q por sinal já eram EXCELENTES). Agora, veja só, vc já nos presenteou com pérolas como "Máscaras da Vida" (ainda esperando outros desse), "Charla Burlesca", aquela do Arthur D´Angelo (q esqueci o título) e agora esse.
Muito bom mesmo. Fico imaginando um livro escrito por vc. Queria ser o primeiro a ler.
Grande abraço! Saudades!

Anônimo disse...

Você escreveu "escuro" errado.

Anônimo disse...

Surúúúúúúúúúúco!!!!!

Bruno Carvalho disse...

Divino Felipin, divino!

Esse é um daqueles textos que só Felipe Carvalho poderia escrever! Esse tom irônico é muito interessante!
Assim como a maioria das duplas que se prezem, sempre existe o bom e o mal.
Muito bom!!

Carlos Filho disse...

Putz, sou seu fã, cara!!!