sábado, 24 de março de 2007

O padre nosso de cada dia

por Felipe Carvalho

Aquele livro delicioso parecia ter entrado em greve depois que o rapaz chegara à pagina 101. Nada no mundo fazia com que eles voltassem a se aproximar! As cartas de Janete já se empilhavam sobre a escrivaninha, sem sequer um telegrama em resposta exprimindo preocupação ou agradecimento. Barba por fazer, cabelos desgrenhados, cinco quilos extras e nenhuma vontade de nada. Aurélio estava imergindo fundo no isolamento e no descaso consigo próprio. Passava o dia caminhando pelo parque e criando justificativas que sustentassem sua absoluta nulidade e seu total descompromisso com o que quer que fosse. Ele simplesmente “não estava a fim” – era essa a melhorzinha de suas desculpas, podem acreditar!

Voltando distraidamente de uma de suas caminhadas matutinas, Aurélio colidiu brusca e brutalmente com um padre que dobrava a esquina e ambos foram arremessados ao chão. Após uma troca de desculpas e gentilezas, Aurélio resolveu acompanhar o padre até o seu destino. Ele não sabia por que fazia aquilo, mas acreditava que aquele diálogo poderia lhe render alguma perspectiva.

Aurélio jamais tivera qualquer convicção religiosa, não torcia por nenhum time de futebol, não tinha amigos, namorada, não participava de qualquer grupo esportivo ou artístico, não tinha opinião formada sobre praticamente nada e sequer algo que vagamente se aproximasse de uma ideologia. Aurélio era vazio como a sua carteira da turma da Mônica, em branco como as folhas de seu diário e inerte como a pilha de roupas sujas que se multiplicava num dos cantos de seu quarto. Era tão lerdo e sossegado que, caso sofresse morte súbita, provavelmente isso levaria no mínimo uns dois meses. Ele não era um cara mau, pois para isso precisaria ser alguma coisa e Aurélio não conseguia ser nada! Não foi à toa que a última carta de Janete estava endereçada ao “Sr. Vácuo”!

Mas se havia, no entanto, uma dificuldade que Aurélio não tinha, era saber expressar suas angústias. Em outras palavras, ele era um contumaz reclamante! E, dessa vez, em sua confissão ao inusitado sacerdote, pôde pôr na roda toda a sua autocomiseração! E o fez de modo tal que o resultado daquele encontro não poderia ter sido melhor!

Depois de expor todos os seus conflitos e malogros, Aurélio não sabia se devia esperar por um piedoso consolo ou duros sermões daquele senhor de cabelos grisalhos. Então, num forjado ar de vítima, aguardou ansioso a réplica do bondoso velhinho: um violento e retumbante tapa que ecoou por toda a catedral e fez com que o pescoço do jovem se deslocasse para a direita, fora desferido pelo amistoso velhinho. Por instantes, Aurélio pensou se tratar de uma tábua de cortar carne e não uma mão humana aquilo que lhe traumatizara a face. Ele jamais imaginara que um senhor de fala tão mansa e feições tão envelhecidas pudesse reunir tanta força e deixá-lo gemendo no chão da igreja com um só golpe.

Pela primeira vez desde que seu pai deixara de lhe castigar quando ainda era um meninote, Aurélio conseguiu derramar lágrimas novamente! Permaneceu naquele corredor, estendido no chão, por cerca de quarenta segundos. O padre, frio e calmo, assistia com indiferença ao reerguer daquela criatura. E, ao que o garoto finalmente se refez, sua única palavra foi “Obrigado!”.

9 comentários:

Bruno Carvalho disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Bruno Carvalho disse...

Felipe,

Você descreve muito bem seus personagens, e, claro, a história em si. Coisa inigualável, ímpar. Faz com que a gente se interesse cada vez mais pela narrativa. Um diferencial que poucas pessoas possuem.
Neste caso, além de incorporar muito bem a sua originalidade, a história foi deveras original.
Um sacerdote! E com essa atitude (corretíssima para o caso de Aurélio) foi simplesmente genial!

Parabéns! Depois de "A marcha de Peres Brow", essa é uma das melhores!

Ciro disse...

Felipe, acho que vc viajou legal nesse texto. Ou deve ter sido eu, vou ter que lê-lo de novo! Mas essa parte do padre dando um tapa na cara do cara e a "carteira da Turma da Mônica"... me lembram grandes momentos de seus textos, como aquele da "Marcha de Peres Brown", quando... bom, deixa pra lá!
Seu texto está cheio de palavras que REALMENTE precisam da ajuda do "Aurélio", heheheheh!!
Grande abraço!

Anônimo disse...

"nulidade", "desgrenhados", "contumaz", "malogros" ... ei, cara! Quer nos deixar malucos?

Anônimo disse...

That´s the Biblia Sagrada com ilustrações de Walt Disney!!!!!

Anônimo disse...

nulidade: qualidade do que é nulo, do que não existe; indivíduo sem competência, capacidade, ou préstimo.

desgrenhados: não penteados, desalinhados, desarrumados.

contumaz: costumeiro, habitual, insistente.

malogros: fracassos, reveses, baques, insucessos.

Anônimo disse...

Não sei quanto ao Aurélio, mas eu adooooooro apanhar!

Flavio Carvalho disse...

Hahahhaahhhahahhhahhaha.

gênio, hahahahahahahahahah

muito legal felipe,

estou rindo até agora!!!!

hahahahahaha

( apesar de ser coisa séria!!!!)

Sessyllya ayllysseS disse...

De fato, esse texto nos mostra o crescimento cada vez mais claro de um grande escritor: interessante, bem elaborado, original... Parabéns, garoto!!! Muitas pessoas precisam é disso mesmo... Pena que nem todos os "conselheiros" têm a perspicácia desse padre aí...
Bjos!!!