sábado, 14 de abril de 2007

Dicotomia

por Felipe Carvalho

Em seu quarto, uma mesinha de madeira imbuia e sobre ela um livro de Jorge Luís Borges com uma rosa que ganhara marcando uma página. Nas paredes brancas que o cercavam, frases de autores célebres e anônimos escritas à mão por ele próprio. Era também possível escutar um clássico de Duke Ellington que ele conseguira adquirir ainda em vinil ressonando de sua vitrola.

Em seu quarto, uma escrivaninha rosa-shocking e sobre ela um álbum de fotografias de sua última viagem a Porto Seguro. Nas paredes que a cercavam, dezenas de pôsteres de galãs do cinema e da televisão tornavam incógnita sua real cor. Pelas caixas de som do computador ouvia-se o bate-estaca das ‘Pussycat Dolls’ reboando por todo o quarto.

Ele arrumava seus armários na ilusória tentativa de pôr ordem em seus pensamentos. Uma xícara de café forte e fumegante que ele mesmo preparara lhe acompanhava nessa empreitada. Não conseguia entender como podia haver pessoas tão vulneráveis ao que lhes era imposto pela sociedade. Era crítico. Custava-lhe perdoar o menor de seus deslizes.

Ela arrumava seus armários, pois já não havia mais espaço para suas novas aquisições e precisava se desfazer de alguns itens. Uma long neck de vodka lhe provia o ânimo necessário para a dura tarefa. Ela preferia nem se ocupar dos chatos e mal-amados que tentavam “acordá-la” para problemas e cobranças apenas. Era intransigente. Não tolerava a menor das críticas.

Ele fazia tudo com muita calma. Para que tanta pressa se depois só restariam ele e seus pensamentos incorrigíveis? Tinha um ar quase que professoral e uma dicção tão clara que chegava até a mascarar sua aguda insegurança. Mas quando começavam aqueles velhos bate-bocas entre os seus amigos e familiares, ele tinha urgência em terminar suas refeições ou arrumar qualquer pretexto para sair dali.

Ela tinha pressa e afobação para tudo. Engolia a comida quase que inteira, falava rápido e detestava ter que esperar o que quer que fosse. Recolhia a mesa do café com uma violência bárbara. Fechava as gavetas com estupidez, se servia à mesa com má-vontade e esganação e nunca esperava a comida descer para começar a falar quase sempre alto e atropeladamente. Mas quando ia tomar banho ou conversar ao telefone, sua usual inquietude se convertia em paciência monástica.

Ele queria os dias mais curtos, precisava pensar menos, deixar-se envolver menos, diminuir o ritmo de sua interação com aquilo tudo. Quem dera conseguisse dormir mais e lhe sobrasse menos tempo para ruminar sobre sua vida.

Ela queria mais tempo para navegar na internet, queria teclar com seus amigos, baixar músicas, descobrir as novidades do show business, receitas para dietas, dicas astrais e truques de sedução e de maquiagem. Queria ficar acordada mais tempo, mas não resistia e acabava dormindo como uma pedra.

Ele respirava. Ela bufava. Ele refletia. Ela resmungava. Ele nunca beijara na vida. Ela nunca passava vontades. Ele era canhoto. Ela tinha anéis até nos dedos dos pés. Ele trabalhava com imperfeições. Ela queria tudo na hora. Ele era casado com a sua solidão. Ela desconhecia que era só. Ele tinha dores na alma. Ela nem sabia o que era isso. Ele precisava de abraço. Ela era egocêntrica. Ele sabia de sentir. Ela não enxergava o óbvio.

Eles dividiam um mesmo lar, tinham inclusive as mesmas raízes. E nem tinham que se tolerar. Coexistiam em universos paralelos. Ele e ela, ela e ele. Indivíduos que mamaram num mesmo peito. Antitéticos, antagônicos, mas produtos de um mesmo meio.

9 comentários:

Unknown disse...

Feelipee! :D

eu amei esse texto.
por incrível q pareça eu intendi tudo!
e acho que tem alguns pontos semelhantes com a nossa família! iaushauihsaiu

Beeijo*

Sessyllya ayllysseS disse...

Putz, Felipe!!! Texto arrepiante!!!

Você usou as palavras de maneira incrível, exata, sublime!!! Além disso, me identifiquei demais...

Parece que não são só os personagens desse texto que vivem assim... Realmente, apesar de viverem juntos e em condições mais ou menos parecidas, cada pessoa é um ser único e encara de maneira diferente os fatos da vida, transformando-se em pessoas diferentes... E muitas vezes, por serem tão diferentes, essas pessoas acabam se privando de "conviver"...

Enfim, ADOREI o texto!!! Você está cada vez melhor!!!

Bjos!!!

Priscila disse...

Felipe como havia dito, cada dia melhor! Belo texto!
Parabéns... é por essas e outras que tenho orgulho de ser sua amiga! bjs

Flavio Carvalho disse...

Muito bom Felipe,

fiquei preso do começo ao fim,
ótimo desfecho, rico nos detalhes,

como sempre gostei muito,

abraços,

Carlos Filho disse...

Felipão
Textão massa pra “caraleo”.
No começo pensei que eles iriam se encontrar e viver um roamnce. Depois pensei que eles já formavam um casal, cada uma com sua personalidade completando a do outro. Depois veio a resposta!
Esse lance de imaginar o texto antes do autor, realmente me faz gostar ainda mais quando ele se torna surpreendente no final.

Parabéns!

Unknown disse...

Felipe, adorei esse seu texto, muito bom!
Parabéns. Sucesso pra você.

Ciro disse...

Felipe, as pessoas já falaram tanto, e muito já foi elogiado... que me faltam palavras para não ser repetitivo.
Mas o texto está excelente, perfeito. Palavras muito bem encaixadas (fora as palavras difíceis que eu não entendo o significado e sempre odeio, vc sabe). Mas é um perfeito retrato de um cotidiano, uma ótima análise dos psicológicos feminino/masculino. Essa parte da mulher falando sem sequer terminar de engolir a comida..., putz, isso foi até meio poético. Hahahahahha!! Fiquei imaginando a cena, como se fosse aqueles mini-filmes de drama familiar que passam na TV Cultura. Muito legal. Temos que aproveitar isso daí.
Grande abraço! Melhor a cada semana!

Bruno Carvalho disse...

Sem brincadeira nenhuma Felipe. Li o texto duas vezes. Por três motivos: Um por achar muito interessante o tema, e outro pela genial colocação das palavras, e outro ainda, pelas idéias. Muito bom mesmo!!

Você tem um estilo peculiar!! Continue seguindo isso!

Parabéns!!! Em uma quarta-feira dessas, te falo um comentário diferente que me passou pela cabeça, mas não tive coragem de colocar aqui!!

Grande abraço!

robertobech disse...

Oi Felipe, sou o Roberto do "Não Seja Medíocre", tudo jóia?

Que bom que você gostou do meu blog! Mas acho que eu devia ter feito outrar regra: "tudo o que não é medíocre dura pouco": estou sem tempo para o blog e ele está suspenso por tempo indeterminado. É pena: eu estava me divertindo tanto com os comentários no meu post sobre a Ivete Sangalo... paciência, quem sabe um dia posto alguma coisa, fique de olho de qualquer maneira.

Parabéns pelo blog, e pelo visto somos dois fãs do JL Borges. Abração!