sábado, 2 de junho de 2007

O álbum de figurinhas

por Felipe Carvalho

Seus sinos internos batiam com retumbância e a úvula vibrava sons inaudíveis. Ela tremia toda num torpor de silêncios inconformados. Começava a pensar a vida como um álbum de figurinhas duma criança dos velhos tempos, cheio de páginas de cores e ornatos diferentes; momentos de todos os sabores, de todas as densidades.

Ela agora refletia por sobre o álbum e as figurinhas ali coladas. Percebia nitidamente, à medida que o folheava, que certas páginas a prendiam de modo patognomônico, bem típico daqueles fanáticos e alucinados. Outras vezes, mirava as figurinhas de que gostava e tinha ensaios de felicidade, mas logo ela corria os dedos para as orelhas e rugas das gastas e recorrentes páginas de terror, para os coringas de sua história curta e mesmo pr’aquelas tantas folhas com medo de se completar, vazias, intimidativas.

Pôs as duas mãos no pescoço e começou a se enforcar em represália... Repreendia-se por sua covardia e persistência estúpida no que sabia que só a destruía. Segurou as mãos compridas com uma fúria que poucas vezes demonstrara. O rosto vermelho, quente, o sangue ali estancado e... Logo viu que não seria esse o caminho.

Abriu a gaveta como um viciado que azoretado busca por alívio. Tirou dali tesoura e cola e sorriu de modo doentio enquanto pressionava aqueles objetos quase que se ferindo. Começou então a recortar todas as gravuras que a faziam bem. Talvez nem fossem tantas, mas demorou horas, foi exaustivo, penoso, e ela se via cada vez mais capaz de enfrentar aquele álbum todo espinhoso.

Numa enorme folha bem branca começou a sonhar paisagens... Fez alguns desenhos e escreveu coisas lindas que queria ler para sempre. E ia colando as figurinhas em meio às cores e poesias que criara e inda ia criando... E aquela salinha se iluminava como em cena de espetáculo! Aqueles recortes a inspiravam de modo tal, que recorria até ao que não podia: inventava coisas que queria que tivesse! Ora, por que não poderia? E aquilo foi ficando tão belo aos seus sôfregos olhos...

Queria agora recorrer a esse tesouro sempre, e desejou ter tanto e tanto o que escrever e recortar e copiar e plagiar que nem poderia caber naquela folha, talvez sequer em sua sala... Pensou em pôr moldura e colar numa estratégica parede. Talvez encher de fotografias, bilhetes e coisas que nem mesmo entenderia... E haveria palavras que seriam portais, versos que soariam como valsas...

Era esse seu relicário: seu, como escolhera e para sempre... O resto do álbum... Nem se lembrava mais, talvez apodrecesse num canto qualquer, talvez servisse de banquete às traças... Ela é que não se arriscaria a tocar novamente aquelas folhas. Adeus, álbum de figurinhas!

5 comentários:

Sessyllya ayllysseS disse...

Primeironaaaaaaaaaaaaa!!! (Dâr!)

Sabe, Felipe, gostei muito da atitude dessa personagem e acredito que é exatamente essa a idéia para crescermos na condição de seres humanos: retornar ao passado, resgatar dele o que nos foi bom e marcante e deixar o resto lá, abandonado, esquecido, como se nunca tivesse existido.

Além isso, mais do que isso ou depois disso: a essas peças "boas", juntar o presente e sonhar o futuro, valorizando o que nos dá ânimo e força para enfrentar a vida e vivê-la, em vez de apenas suportar cada novo dia como se fosse uma prova de sobrevivência.

Identifiquei-me imensamente com esse texto: comovente, complexo, melancólico, misterioso e lindíssimo! Parabéns!!!

Beijos!!!

Bruno Carvalho disse...

Boa Felipão!

E quem não tem aquela figurinha no álbum que gostaria de tirar ha?
Bom texto!

Valeu!

Flavio Carvalho disse...

Muito bom Felipe,

achei a ilustração muito adequada!

abraços,

Ciro disse...

Realmente, essa ilustração ficou show de bola!
O texto também está legal, muito bem escrito. Aliás, bem escrito até DEMAIS com essas palavrinhas difíceis! E aí Hard Words? Hahahhahaha!!
Grande abraço!

Anônimo disse...

Feliipe! Gosteei demais!
Vamos valorizar o que tivemos de bom no passado e jogar fora o que não serviuu, pq o que passou, passou, não é mesmo? Mesmo que para isso a gente precise organizar através de nossas mentes um "álbum de figurinhas" pra poder abstrair o que há de bom e o que há de ruim!

Beeijo ;)