sábado, 7 de julho de 2007

Dois pontos

por Felipe Carvalho

Ele era em preto-e-branco, assim como tudo o que guardava na lembrança. Mas a pressão para se tornar colorido, os apelos para integrar a massa multicor eram tantos e tão fortes que sem querer ele passava a desvalorizar as suas cores. E já não sabia o que fazer daquilo, como cuidar de sua aquarela sem se incomodar com as demais cores quase sempre chamativas, invasivas. E aos poucos se via corrompido, colorindo-se a contragosto.

Que ansiedade era aquela? Não podia parar, não conseguia pensar com propriedade. As urgências, as demandas externas eram tão tentadoras, tão constantes e contínuas que um momento de reflexão saía caro, uma fortuna! E quanto mais evitava esses momentos, quanto mais era parte daquele disco heterogêneo, policromático e tocado por uma agulha uniformizadora, mais penoso era abandonar tal circuito. Aquelas cores e acordes, letras manjadas, tons batidos, rimas óbvias... O que ELE fazia ali? Não precisava de nada disso! Era preto e era branco, mas era rico, farto em tonalidades e nuanças. Era possível desenhar o que quisesse com sua modesta aquarela de dois pontos.

Mas achava que tinha que dar conta de tudo! E o que seria dar conta de tudo? Assistir a todos os filmes que podia? Conseguir todas as músicas das paradas? Seguir todos os modismos que condenava? Fazer todas as viagens que o orçamento permitia? Beijar todas as bocas que se insinuavam? Será que realmente era necessário todo esse “entretenimento” para fazer valer a sua cor? Será que essa hipérbole colorida, musical e supostamente cultural não estaria somente fazendo com que se esquecesse cada vez mais das pinturas que ele próprio podia criar? Era dessas “novidades” prontas que precisava?

Sua angústia o consumia. Sim. Não. Sim. Não. Talvez. NÃO! E esse fora o seu ‘não’ mais saboroso, um ‘não’ que era para si um gigantesco SIM! Sua pressão passaria a ser pela não-pressão, pelo saborear lento e reflexivo do que achava que devia.

Uma conversa há poucos dias mudara o rumo de seus pensamentos; o último filme visto lhe dera uma perspectiva bastante interessante sobre família. Lia, escrevia, ouvia e de vez em quando resolvia falar um pouco. A pressa agora era pela qualidade, pelo crescimento, pela intensidade, pelo respeito àqueles dois pontinhos com os quais ainda estava aprendendo a trabalhar. Não queria mais dar conta de tudo, queria que tudo desse conta dele, o tomasse com paixão! Queria que esse tudo (que muitas vezes não era quase nada) fosse tão significativo e legítimo que não haveria mais por que estar em constante e frenética busca por outras cores.

Ele não estava mais competindo ou se exibindo, estava SENDO, de modo intransitivo e pleno. E só assim, sendo a si mesmo, era possível entender aqueles dois pontos. Só assim fazia sentido restarem ali apenas o preto e o branco. Seguia sem pressa, sem comparações. Estava a seu tempo, no seu templo e em preto-e-branco, como ele era!

7 comentários:

Sessyllya ayllysseS disse...

Parece que uma onda "auto-reflexiva-relativamente-positiva" arrebatou nossos pensamentos, os meus e os seus... Pode reparar a familiaridade entre os textos... O conflito com si mesmo, a busca por si mesmo, a descoberta de si mesmo e a convivência com si mesmo... Tudo muito complicado internamente, embora simples aparentemente. Que bom que, no fim, o resultado foi pacífico, equilibrado... A analogia das cores foi muito bem pensada, cara, a imagem ficou ótima!!!
Parabéns!!! Beijos!!!

Ciro disse...

Deveras bom, Felipe! Uma excelente alusão do que alguns de nós tem sido realmente e ultimamente. Um anglo bem legal de se ver as coisas quando nos sentimos um pouco excluídos. Lembrou um pouco o livro "Flicts". Mas lá, a cor era bem mais carentona e fraca. Nada comparado ao seu "duas cores", pois esse ultimo tem bem mais personalidade, heheheh!!
Grande abraço!

Flavio Carvalho disse...

Nem sempre o que o mundo sugestiona
é o melhor caminho,

O rústico, o retrô, encerram grandes clássicos,

falou tudo Felipe,




abraços!

Noé Sobrinho disse...

O preto, ausência de cor, se juntando com o branco, que contrasta fundos e feitios de quadros, desenhos e tudo mais que nossos olhos contemplam, fazendo da sua mistura o cinza. Nem sempre rumamos em direções avessas, e nem sempre a favor do rio, mas sempre chegaremos em um lugar, sombrio sendo ele, ou multicolorido pelo encanto. Sendo assim, os dois nos leva a algum aprendizado, meu caro!
O que importa é sempre relevar o que os outros dizem e escutar mais o coração. As mascaras sempre caem no final da peça, mas o sentido do coração permanece em qualquer Arlequin.

Vassago disse...

Fi, belíssimo texto... Nossas cores acabaram se cruzando e se descruzando...
A gente se fala! Abrçs!!

Carlos Filho disse...

Bom o texto...dá pra analizar com quantas cores se faz um arco iris (nada a ver_)
hahahahahaha

Bruno Carvalho disse...

Fantástico, muito bem bolado!
Adorei o final:
"Seguia sem pressa, sem comparações. Estava a seu tempo, no seu templo e em preto e branco, como ele era!"

Seu texto nos remete a várias coisas, o que é muito bom!


Valeu!