Já sabia que iria morrer. Era uma notícia que não mais o assustava. Embora não suportasse mais os olhares de pena quando por ele passavam, estava se acostumando com a idéia de que não estaria no mundo dos vivos em pouquíssimo tempo. Num primeiro momento, enxergava a morte com profunda melancolia. Só pensava em tudo o que deixaria para trás. Suas família... Não, era sorte largar aquela família que nunca lhe dera muita importância, na verdade sua família sempre lhe fora um estorvo; era difícil deixar os seus amigos... cães traiçoeiros que não mereciam um pingo de confiança. Era uma bênção não mais vê-los. Teria que abandonar suas mulheres, sim, todas. Elas ficariam viúvas, tristes solitárias... Tristes sim, ele concordava; solitárias, jamais.
Ao fazer o balanço geral, rebalancear algumas particularidades, analisar os prós, os contras e os talvezes, verificara que não seria muito ruim a idéia de morrer. Suas dívidas provavelmente ficariam por ali mesmo, sem ter alguém que pagasse. Pensando bem, compensava fazer outras contas, maiores, já que não poderiam mesmo processá-lo em tão curto espaço de tempo. Daria presentes, presentes a si mesmo, como prova de gratidão e afeto por ter sabido viver tão intensamente todos os dias de sua vida. A partir daquela hora, não mais veria as suas mulheres, deveria dedicar-se exclusivamente aos seus interesses, que nunca passavam de se jogar no sofá e assistir a uma boa partida de futebol: assistir às vitórias do Vargem Grande, seu time do coração... Dizem que uma vez recebera uma coroa de flores... Era uma homenagem ao seu quase único e exclusivo torcedor, que estava em processo de breve partida... Ninguém nunca confirmou o fato.
Todas as vezes que o seu telefone tocava, atendia tão funebremente que pensavam falar com um morto ainda em vida. E por tamanho desconforto, logo desligavam sem que soubessem de sua saúde ou das últimas notícias de sua morte. Era de conhecimento geral que sua ela não tardaria. Em breve, ele desapareceria e nem rastros seriam deixados. Em tempo mais breve ainda, nem seu telefone atenderia... Ia morrer mesmo, pagar a conta por quê?
Quando estava sozinho, gostava de imaginar aquela senhora vestida de negro, com uma foice em mão, pronta para separar o corpo de sua alma... Essa idéia o excitava. Chegara a comentar isso com os poucos conhecidos que, por misericórdia, ainda ousava visitá-lo. Era indizível as expressões desses quando neste assunto ele tocava. Um mal-estar tomava conta do ambiente e ele, mais uma vez, perdia o visitante. Nunca se soube se isso era proposital ou mesmo se era falta de bom senso. O que se sabia é que em um espaço mínimo de tempo, não lhe restava nada mais além do que os olhares e os comentários de piedade... “Aquele pobre maldito... tão perto do fim”... Cada dia que passava era um dia a menos pra ele. Não só pra ele!
Em casa, sozinho, no escuro e sem água, soube por comentários ouvidos ao pé do muro que o vizinho – um touro de homem – havia morrido repentinamente. Era alguém com uma vida longa, pensou, no entanto, fora primeiro que eu. Pobre diabo! Não se passou muito tempo, novos vizinhos, parentes distantes, parentes próximos, amigos velhos, novos inimigos, todos iam dizendo adeus à essa vida. Um dia estranhou tamanha coincidência, mas não tinha com quem comentar. Se sofria, sofria calado. E considerava as coincidências como algo ilegítimo e raro.
Quando se deu conta que não morrera nos tempos prenunciados, assustou-se; deixara de viver a vida pra viver a morte e, no entanto, ela não viera. Muito se passou. Muito se perdeu. Não lhe restou nada. O quadro que se via realmente era de morte... Sua casa, o seu sepulcro. Autoenterrara-se. Vivia da morte que nunca veio. E morreu para a vida. Agora chorava triste e desoladamente... Nada lhe restara além dessas lágrimas tão negras e amargas. Ao seu lado, a morte sorria. Estivera ali por 10 anos. Achava divertida aquela situação. Mas quase já era hora de voltar ao trabalho...
5 comentários:
Primeirooo!!! ahauhauhauahauhauahua
O que um possível falso diagnóstico não poderia fazer com a vida/morte de uma pessoa? Muito interessante esse questionamento sobre o poder da auto-sugestão e a nossa fácil "entrega" às circunstâncias! E por que não pensar que o contrário também é possível? Convencer a alguém de que está bem, de que é belo e tudo pode; será que isso também não poderia produzir "efeitos" nesse alguém?
"Autoenterrara-se" foi perfeito para descrever a cena! Genial!
Cada vez mais eu sinto um estilo próprio em tudo o que escreve, rapaz! Parabéns, Régis!! Excelente!!
Ô loco meu,
muito legal,
com uma mensagem e tanto.
abraços,
Rê, simplesmente genial!
Além do enredo fantástico - que nos leva a uma reflexão muito real - e das imagens super bem construídas, as transformações lingüísticas que você ousou ficaram ótimas, maravilhosas!!!
Um quê de Vassago, talvez por isso eu tenha gostado tanto... rsrsrs
Reafirmo o que disse o Felipe.
Parabéns!!!
Bjus!!!
Peguei essa mensagem(pelo menos uma)
Aproveite a vida, pois você não sairá vivo dela. A morte não tem tempo certo, mas tem um tempo prévio.
Acho que foi akguma coisa assim, ou eu falei uma grande bobagem.
Excelente |Regis! Uma de suas melhores!
E quem não conhece gente assim, ou pior, que sequer tem um a doença e já se deixam morrer, e aproveitando de sua alegoria, morrer em vida...
Muito bom!
Meus sinceros parabéns!/
Grande abraço!
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