Por Giovanni Oliveira
Desta vez não acontecera antes da aurora, como de costume, mas sim antes do crepúsculo. O sol já se preparava para despencar na imensidão da noite. Na sala, dois copos sobre a mesa um pouco vazios, não era possível saber se era vinho branco ou cerveja, mas era alguma coisa, talvez até refrigerante. Na cozinha, sobre a pia, um frango descongelava para o jantar que seria servido sabe-se lá a que horas. No corredor, um resto de aroma levemente amadeirado ainda resistia ao dia. Uma fragrância que sugeria algo masculino.
O quarto era relativamente grande. Nada exorbitante, mas havia uma cama de casal, uma cômoda e um guarda-roupa. Em um canto, havia uma mesinha com a televisão e um aparelho de DVD. No chão, um tapete de pelúcia. Sobre esse tapete de pelúcia, restos de perfume masculino. Na cama, os dois corpos ainda quentes e suados, levemente abraçados. No rádio, uma melodia romântica e ao mesmo tempo um pouco antiga.
- Há muito que não passávamos momentos assim, Paulo! Foi muito bom. Foi bom pra você também?
- Foi assim... Fantástico! Aliás, é uma pena que nunca tivemos um relacionamento fixo, pois sempre nos demos muito bem. Talvez seja por isso, né!...
- É... fazia tanto tempo que não passávamos momentos assim.
- Isso é porque você já se acostumou com o meu corpo, tá ligado? Nossa, você foi demais!
- Não, Paulo, é você que é demais. Eu sou só uma pessoa que gosta de estar perto de você. Gosto muito de estar perto de você. E como é bom estar com você!
- Ah, acho melhor pararmos com essa de quem de nós dois é o cara melhor, senão vamos acabar brigando.
- Bobo, até parece que algum dia brigamos!
- É verdade, cara, pensando bem... nós dois nunca brigamos.
Por um momento, pararam a conversa. Os dois amigos pararam a conversa, finalmente, pois de repente palavras eram desnecessárias. Nada, aliás, levaria a nada, pois aquele momento que houvera sido iniciado no princípio da tarde, e findaria depois do crepúsculo, estava repleto de sentimentos eloquentes e um pouco fortes demais.
Sempre houvera promessas de sentimentos puros, e realmente não eram somente promessas, eram, sim, sentimentos puros. Depois de um momento de silêncio, os dois amigos iniciaram nova conversa.
- E como estão você e a Gina?
- Ah, Paulo, ainda na mesma. A verdade é que a Gina é muito cheia de mal humor, reclama de tudo, não tem paciência com nada. E com isso as crianças acabam sofrendo também. Que arrependimento eu tenho de ter me casado com ela! Aliás, que arrependimento, cara, de ter me casado. E pensar que naquela época eu e você poderíamos ter tido um relacionamento sério...
- Não se culpe, Carlos. Não se culpe por isso. Nós dois sabemos que você foi praticamente obrigado a se casar. Até hoje eu não esqueci da cara de raiva do pai dela achando que aquele filho era seu. Mas acho que você deveria ter contado tudo depois que ela perdeu a criança.
- Não, Paulo, não... Se fosse hoje talvez eu contaria, mas naquela época foi pressão demais em cima de mim. Depois que ela perdeu a criança, veio a fase da depressão, lembra? Além disso, minha família fazendo chantagem, me acusando de um monte de coisas, achei melhor ir levando a vida com ela do jeito que desse e pronto.
- É, Carlos, agora não adianta chorar o passado, mas você fez errado, cara, porque acabou assumindo algo que não era sua responsabilidade. Afinal, você e a Gina não tiveram nada além de um relacionamento passageiro, não foi?
- Eu a conheci na boate, ela não largava do meu pé. Demos um beijo e passamos a noite juntos, mas não chegamos a transar. Depois de muito tempo soube que na noite em que nos conhecemos ela já estava grávida do ex dela. Talvez tenha sido um erro sim, mas agora fazer o quê? Eu era muito jovem na época, morria de medo de meus pais, e no fundo achava que casamento logo logo chegaria ao fim. Mas deixa isso pra lá, não tem mais jeito. Que merda de sociedade é essa que acha que todo homem tem que casar com mulher!!! E você, cara, como anda?
- Ah, Carlos, ando na mesma também. Sozinho. Mas graças a Deus não me casei com mulher nenhuma, pelo menos nesse ponto eu tive força pra dizer “não” pra sociedade. Eu queria mesmo é viver contigo... Eu nunca tive nenhum outro homem além de você, cara. Vamos viver juntos, você ainda é jovem, Carlos, acabou de completar quarenta anos. Tem toda uma vida pela frente, seus filhos já estão em idade de entender que se o casamento entre você e a mãe deles nunca foi legal, o melhor é...
- Melhor o quê, cara? Chegar pros meus filhos e dizer na cara deles que o pai que eles dizem que tanto amam é um homossexual frustrado e enrustido? Que casou com a mãe deles só pra mostrar pra família que era “macho”? Dizer pra eles que o pai deles na verdade sempre amou um outro homem? E eu vou dizer o que pra minha família inteira? E pros meus amigos? Vou dizer o que pra família da Gina? Eu não presto, cara, não presto, eu sou um fraco, eu fracassei!!!!! Me abraça, Paulo, me abraça!
- Calma, cara, calma... calma... calma!... Vem aqui, calma... Vai, chora... põe a cabeça aqui no meu peito... vai, chora... Alivia sua alma, vai, eu estou aqui contigo!...
- Eu te amo, Paulo! Como eu queria só você na minha vida, como eu queria!!!! Valeu, cara, valeu...
- Eu também te amo demais, Carlos. Amo você, cara. Pode chorar, estou aqui pra te dar meu amor...
- Valeu, cara, valeu...
Esta é a história de Paulo e Carlos. Esta é a história de dois amigos que se amavam um pouco demais.
No próximo ano pretendiam fazer uma viagem para ficarem mais tempo juntos. Dentro de Paulo e Carlos havia muitas tentivas de seguir caminhos profundos através do que em outros lugares poderia ser chamado de amor. Mas aqui é chamado de Grá. Isso é porque o Grá é superior, e não poderá jamais ser carregado inteiramente por qualquer criatura deste mundo, apenas poderá ser desvendado ou ainda sentido pelas pessoas que são. Essa era a lembrança do dia em que Paulo e Carlos se conheceram. Havia muitos anos, era uma tarde de chuva. Na rua, o asfalto molhado provocou o encontro dos dois ainda adolescentes, e o resultado fora a luz dos olhares que naquela hora se cruzaram, revelando que o Grá já havia escolhido ambos para serem amantes por toda a vida.
Foi assim que se conheceram, em plena chuva, quando a bicicleta derrapou no alfalto molhado pela chuva forte e Paulo caiu no meio da enxurrada. Foi assim que Carlos, que também vinha de bicicleta, parou para ajudar o futuro amigo e amante a se levantar. Foi assim que os olhos dos dois, um azul e outro verde, se encontraram. Foi assim que um sentiu, pela primeira vez, a pele e a presença do outro.
Foi assim que hoje os dois amigos ainda se amam e se desejam e se consomem e se amam e se doam... Tudo por meio do Grá. E assim os dias seguem únicos e unidos. Depois da crise de choro, Carlos adormeceu nos braços de Paulo, que ficou até tarde da noite dando carinho e amor ao amado. Lá fora, começava a chover levemente. Na cozinha, o frango que antes descongelava fora novamente guardado no freezer, para outra ocasião. Na cama, os dois amantes, adormecidos, sonhavam com o próximo ano. Foi assim que o Grá fez a escolha.
2 comentários:
Cecília,
O texto mostra também que apesar de uma escolha errada no passado possa trazer consequências dolorosas, sempre pode ser tempo de recomeçar e ser feliz. O amor que existia entre Paulo e Carlos era capaz de superar todas as dores.
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