sábado, 26 de março de 2011

A SOMBRA-QUE-CAMINHA

Giovanni Oliveira

Dividindo caminhos iguais, a Sombra-que-caminha sombreia a água da morte. A sombra que se nos vai revelando aos poucos.
O nosso sorriso some, e ela disse seu nome não. Ela é simplesmente a Sombra-que-caminha. Ou unicamente Ela. Seu nome não sabemos, porque, na verdade, não SE chama solidão, como as pessoas concebem, porque é a Sombra-que-caminha. Ou simplesmente Ela.
Ela acompanha os que sentem desejos de ser. Aqueles que buscam encontrarem-se com o Grá são aqueles cobertos por Ela, a Sombra-que-caminha. Parece que quem busca o Grá não o encontra, pois o Grá possui maneiras de se apresentar somente àqueles que não procuram nada.

Não é o caminho do lugar onde se quer ir, mas a Sombra-que-caminha balança-SE sobre todos. Alguns atendem-NA, deixando-se congelar pela Sua influência irritante. Pobres criaturas que se dividem em pedaços de si mesmas, para poderem esperar pelo amanhã inóspito.

Talvez se compuséssemos notas longínquas que tomassem voo longínquo até sabe-se lá para onde, talvez não sentíssemos faltar o ar ao vermos outras pessoas juntas sendo. Porque ser sozinho é deixar de ser, é o não-ser. É o que os gregos chamavam de mé ón, isto é, o não-ser.

Porque encontrar-se com a Sombra-que-caminha é tornar-se o rouxinol que canta tão somente para si mesmo. É também ser o peixe nascido e criado no deserto.

Seco.

Ou ainda a abelha em estado latente de nascente congelamento.

Porque o canto d’Ela é o som do silêncio que destrói ou corrompe a essência, e derrama luzes ásperas sobre o que ainda existe enquanto a sensação de Sua úmbrida túnica não chega. A Sombra-que-caminha é a sombra do mês de março.

Às vezes Ela cobre as pessoas depois que muitos amaram e choraram, vem após o completo desespero gritante.

Outras vezes, no entanto, envolve-nos ainda no útero, fazendo-nos nascituros fracassados. É porque amamos o que não existe. Assim nos inteiramos da vida seca que levaremos desde sempre e até o final. A música seca do silêncio que funde-se com o vento seco a trazer-nos secas folhas do outono, sem retorno.

Então quero afundar mais e mais em mim mesmo.

Quero andar em direção ao tudo, ou ao nunca mais. O nunca mais não existe.

Quero esquecer que nasci para não ser e assim poder um dia ser para conseguir nascer. Ser, para mim, é encontrar-me com o Grá.

Vede-vos, pois, a natureza com suas aves se amando, a migrarem unidas para onde o sol brilha. Porque amo o sol que ilumina o céu azul. E por amar o céu azul, também amo ainda mais o mar. Felizmente, quem ama o mar é menos atingido por Ela, a Sombra-que-caminha.

Senti-vos, ainda, a brisa tocando cada montanha e sendo feliz em dividir-se com o vento. A brisa e o vento são únicos, unidos. Eles É.

Contempla-te o dia e a noite. Há nada mais completo.

A Sombra-que-caminha pode ser para todos nós o momento da anti-chuva, já que, quem não é, é gente seca. Essa leveza que fica no coração transforma-se em árida planície a estender-se diante do nunca mais. Mas o nunca mais não existe, e isso é a mais pura verdade, pois quem disse foi a Hilda.

Então ser só é beijar diariamente o desejo que jamais há de realizar-se, abraçando o tempo que nunca passa, amando somente o que não existe. Atravessando a vida em se apaixonando por várias vezes e não viver nenhum desses amores.

A Sombra-que-caminha surge do silêncio da música, sem cantares. Onde a umidade única provém da lágrima única que jorra despencada até o fim do nunca mais. Mas o nunca mais não existe.

Mas a Sombra-que-caminha existe. Ela há.

Ninguém sabe quando ela chega e Ela não Se preocupa em desvencilhar-Se das vestes que A cobrem. Seu aproximar-se é tido como lento, mas é inconsequente. Ela é rápida para cobrir melhor quem não se dispõe a conhecê-La, Ela é inviolável.

Em derredor, as múltiplas folhas caídas do outono perene é o que se faz nascer em resultado da extinta vontade de conseguir amanhecer o dia sem amarguras. Ela chega. E não, mais uma vez, não diz nada. Somente aproxima de nós Ela mesma. E tão logo se aproxima, acerca-se de nossa existência para depois contemplar o que de mais sem importância há em redor. Serve-se da consciência em estado de puro-sangue e comtempla-a em asco recente.

O perfume d’Ela recende por sobre o pátio, mesmo do lado de fora, levando ilusórias sensações sombrias aos que soem fingirem-se de si mesmos. Não finjo que sou, pois ser para mim é realmente integrar-me com o Grá, e é impossível fingir que se conhece o Grá, pois o Grá apresenta-se diferente para cada um. Então Ela, sempre sombria, repugna-nos com temperamento soez, porque Ela quer fingimento.

Porque ela não tem escrúpulos, sempre tenta ou tenta sempre ludibriar Suas pseudo-vítimas em intentos ociosos de leveza dolorosa. Em vez de pensar, Ela age rápido, mais rápido que o mel em pingamento sobre a pedra rosa.

Gostaria eu de conhecer o Grá.

Mas Ela diz que será para sempre assim, embora o para sempre também não exista. Ela sói agir assim.

Não há como esquivar-se d’Ela, porque Ela te acompanha por onde quer que vás e quando pensas que te encontras livre, Ela se encontra atrás de ti a cobrir-te. Ela, a Sombra-que-caminha, Ela que mantém noivado contigo mesmo sem saberes ou quereres. Ela caminha sordidamente contigo sendo noiva tua, impedindo-te de encontrar quem quer que seja pelo teu caminho de tentar ser; Ela torna-se dona de ti, não permite que outrém se aproxime de ti; não economiza meios de manter os outros afastados de ti, ou manter-te dos outros ao longe. Ela desce contigo por onde fores, enroscando-se em ti sobre ti mesmo, levando-te a pairar por sobre as nuvens altas, ou ainda sob a terra fofa. Contudo, não és tu em pessoa que vais, porque é tua mente volitante que sói ir onde quer que Ela queira. Então tu e Ela descem juntos a lugares onde há frio e a palidez de outras sombras escuras. E de todas, Ela só é a Sombra-que-caminha, pois das sombras só Ela caminha sobre os que querem ser e não podem. Assim é Ela, a Sombra-que-caminha.

Senta-te então, assim, sobre o tapete perto da porta fria e espera por Ela, a Sombra-que-caminha. Deixa, porque Ela se aninha sobre ti para tirar-te da palavra em que te encontras, fazendo te percas em teus próprios desejos. Isso é para que Ela coloque em ti a frieza inerente a Ela própria, impondo sempre sobre ti aquilo de que não gostas, ou não suportas. Mas tens de suportar todo o peso d’Ela, porque a Sombra-que-caminha é como a noite fria que te envolve em névoa gelada, fazendo-te gemer em calafrio fino.

Ela faz com que te sintas em desespero azul. Ou branco, às vezes branco. Outras vezes, na aridez pura do silêncio agreste, presente n’Ela mesma. Porque Ela se comunica contigo pelo silêncio, unicamente. Só isso.

A hora da verdade...

Se acaso pretenderes livrar-te d’Ela, deves primeiro despir-se do desespero azul, ou branco, às vezes branco, e procurares por ti mesmo naquilo que é puro azul, ou puro branco. Podes também consegui-lo em se libertando do desespero branco, ou azul, às vezes azul.

Mas para te libertares do desespero azul, ou branco, às vezes branco, é preciso que ouças, nas sombras da noite, o grilo. É o que precisas para que despertes ao desejo azul, ou branco, às vezes branco, e então te encontres além d’Ela, a Sombra-que-caminha. É a condição: encontrares tua própria vida na pureza da sombra pura azul, ou branca, às vezes branca, para, para sempre, te livrares d’Ela, a Sombra-que-caminha. Porque o para sempre não existe. Porque o para sempre é branco, ou azul, às vezes azul. É isso.

Um comentário:

Ciro disse...

Giovanni, esse texto me remeteu a um passado já distante, gostoso sentimento de nostalgia.
Por muito tempo fiquei à sombra dessa daí, mas ela não é tão forte quanto parece.

Ótimo texto, excelente para quem sabe exatamente do que você está falando. "É porque amamos o que não existe", isso sim foi profundo pra mim, heheheheh!!


Grande abraço!