quarta-feira, 6 de junho de 2007

Cilada

Era o seu dia... Celebravam as vitórias... O grande dia em que se fizera vencedor. Era, enfim, o maior homem da terra. O maior e o melhor. Sorriso jubilante, cabelo ornado por uma linda coroa de louros, o olhar que mais parecia uma barra de ouro, tamanho era o seu brilho. Carregava em si a marca de campeão, de forte: um touro em forma humana. Gritos vibrantes: era a maneira como o saudavam por onde quer que passasse. E ele passava... Peito erguido, olhos soberbos, caminhar altivo – sentia-se um rei. Um bravo rei... O pior dos reis.

Nunca soubera como aquela história de bravura e fortaleza começou. Alguém, com boas ou más intenções, espalhara vários dos seus feitos e havia provas de que, embora nem passasse perto dos fatos, tinha sido ele o herói a cumpri-los. Inicialmente, recusava-se a aceitar o título; recusava-se a se apoderar das peripécias heróicas de outro, mas julgando ser modéstia, o povo o exaltava. Colocando-o no pedestal de herói.

Tantas foram as vezes que acreditou... Sentia-se especial. Agora realmente era um herói. Sem capa e sem espada. Herói sem ato heróico. Herói sem crime para resolver ou mistérios a solucionar. Nem precisava destas coisas, pois já houvera feito fama. Mas continuou a não mover um dedo para a solução dos acontecimentos. Tudo aparecia resolvido em seu nome. E a sua fama e fortuna cresciam.

Foram anos e anos sustentando a mesma omissão... Estes anos o tornava mais popular, mais famoso e mais rico a cada dia. Riqueza, fama e principalmente status: tudo adquirido sem o mínimo esforço. Tudo adquirido por meios obscuros. E seguia com a mentira. Já não tinha tempo para culpar-se a si mesmo, nem se arrepender... Tinha que contabilizar todo o seu dinheiro. Tinha que colocar no papel seus “atos heróicos”... Muitas editoras se colocaram à sua disposição; na verdade, era a décima obra: todas as outras foram sucessos inenarráveis.

Lembrou-se da primeira vez que escrevera. Uma historinha simples, um pouco idiota, na qual, usando a sua débil imaginação, colocava-se em confronto com cinco grandes vilões: enormes, tatuados, com banhas a escorrer por sob as camisetas listadas e um tanto quanto surradas. Falava da luta sofrida, falava dos socos e pontapés que levara, falava da grande reviravolta, falava de sua grande inteligência ao usar a força deles contra eles. Tudo não deu mais que cinco folhas digitadas a custo. Mas por ter o seu nome, as vendas foram extraordinárias. Percebendo aí o lucro, contratara pessoas especialmente responsabilizadas por cuidar da sua imagem literária, fabricando volumes e mais volumes de obras de ficção, que aos olhos de todos se tornavam histórias verídicas de um verdadeiro herói. Era uma verdadeira fonte aurífica.

Estava no auge da celebração daquilo que seria a data eventual do seu primeiro feito. Brindava e relembrava, através de falsas memórias, todas as suas glórias; seus nunca relatados fracassos. No meio de um brinde, olhara algo novo no cenário; alguém se desconfigurava dos outros. Alguém que não fazia parte daquele meio, com olhos ameaçadores, movimentos bruscos, com um sorriso de vingança, perceptível, facilmente perceptível. Era aquele o herói...

Nunca se dera conta de que um dia o verdadeiro “autor das obras” apareceria e reclamaria os seus direitos. Algo de indizível era visto em seus olhos: uma idéia absurda, macabra. Aproximou-se do falso herói, sacou de uma espada e cravou-lhe no peito. Entre lágrimas, sustos, gemidos e sangue cumprira a sua missão, a de tornar eterna a alma e a memória de um herói.

5 comentários:

Felipe Carvalho disse...

E é “engraçado” como persiste isso de uns levarem a fama sem nada terem feito e dos eternos injustiçados e preteridos...

E há quem viva de língua, de fantasia e de disse-me-disse. Há quem se esconda atrás duma máscara ou interprete um eterno personagem para se sentir interessante!

E não adianta dizerem que o mundo dá voltas e “corrige” essas coisas... Às vezes, até “acontece” para uns e outros... Mas se não tomarmos as rédeas de nossas vidas, o “tarde demais” chega SIM, e ele é implacável!

Interessante se falar disso hoje em dia, em que a originalidade parece ser tão pouco valorizada em favor das cópias e dos modismos...

Muito bem, rapaz!

Felipe Carvalho disse...

Sobre o texto ‘Siga’ (atrasadaço eu!):

Bonito isso, Régis! Contanto que estejamos caminhando, em atividade, pouco importa que erremos os caminhos algumas vezes ou que nos metamos em labirintos ou becos pavorosos!

E, de fato, os caminhos, as ruas, são apenas pretextos, símbolos, o verdadeiro percurso, a verdadeira viagem se dá dentro de nós, no conhecer-se a si mesmo, em aprender a se tolerar e, como disse a Cecília, “existindo em nós mesmos” independente do externo.

Adorei a reflexão!

Bruno Carvalho disse...

Impossível não se desanimar perante a grande inspiração de nossos textos! è complicado perceber que aquele texto que escrevemos, e que pareceu tão original, na verdade é uma influência que ficou no sub !
No caso de sua personagem, tudo já estava mais do que explicado!

Final impressionante! Parabéns!

Grande abraço!

Sessyllya ayllysseS disse...

É maravilhosamente cômodo ser herói sem ter que se esforçar para isso... Há quem peque por vontade ou por omissão e há quem se promova pelas mesmas formas...

E tem mais: muitas vezes, as tentativas de desmascarar o falso herói nada mais fazem além de valorizá-lo e reafirmá-lo como tal... Observe-se esses escritorezinhos de auto-ajuda e literatura de cozinha: quanto mais os críticos tentam mostrar sua falta de qualidade, mais eles ficam famosos, são comprados e lidos... (Não que eue steja criticando a auto-ajuda, de forma alguma... rsrsrs)

Enfim, Vassago, o que mais me impressiona em seus textos não é a profunda reflexão que eles provocam em mim, mas sim, a sensação de que os personagens são reais, de que eles existem de verdade e estão por aí, por aqui... Seus textos me fazem sentir que os seres humanos são seres merecedores de compreensão, saca?! É uma sensação super interessante, nem sei explicar direito...

Parabéns pela qualidade do texto e obrigada por me fazer sentir essas coisas (rsrsrsrs)!!!

Bjos!!!

Flavio Carvalho disse...

A glória,

dura tanto quanto o fogo,

sem combustível dura pouco,

no caso da personagem

o combustível já havia cessado,

só que ninguém percebeu,

somente o verdadeiro herói,

muito bom fera,

abraços,