sábado, 18 de agosto de 2007

Identidade

por Felipe Carvalho

Enquanto ensaiava uma expressão facial para utilizar ao cruzar com a sua preferida do momento, Guilherme pensava em tudo o que não conseguia ser. Não, ele não pensava em tudo o que não conseguia ser, pensava em tudo o que Davi representava. Talvez fosse a mesma coisa, uma vez que eram totalmente adversos!

Embora estudassem juntos e mantivessem uma relação cordial, para a tristeza de Guilherme, Davi não era exatamente seu amigo. Talvez o tolerasse e suportasse instantes de sua companhia incômoda e invejosa, mas daí a gostar do rapaz... E olha que Davi era amigo de todos, o típico bom moço, o filho das notas boas e namoradas virgens que todos os pais queriam ter. Guilherme fingia ignorar sua rejeição – como é típico das pessoas inoportunas e insistentes – e teimava em lhe fazer convites para sair, tomar umas ou jogar sinuca. E com toda a cordialidade e paciência, Davi se esquivava do inconveniente colega de sala.

Guilherme fazia tipos, micagens, inventava histórias, contava vantagens, viagens. Claro que tinha lá seus dois ou três seguidores que provavelmente o abandonariam quando enjoassem do seu campo de futebol ou das voltinhas de carro nos fins de semana. Ele mesmo já não suportava mais suas companhias ausentes. No fundo, sabia qual era a deles.

Davi nasceu de família muito humilde, teve infância difícil, cheia de baques e desalentos, mas aprendeu com a vida a driblar certos pensamentos. O colega, no entanto, embora rico e mais estudado, tentava imitá-lo de todas as formas que podia. Aproximava-se dos mesmos amigos, vestia-se de modo semelhante e até as opiniões que saiam de sua boca eram na verdade apropriações indevidas. E quem visse pelo lado de fora, jamais poderia entender tal obstinação. Davi era magrelo, tinha rosto cavalar, era cheio de espinhas e ostentava uma dentição bastante comprometida ao passo que Guilherme tinha tipo de galã adolescente e atributos físicos que em tese não passariam despercebidos pelo sexo oposto. Mas lhe parecia tão difícil achar qualquer graça em si. Era tão complicado e trabalhoso perceber o berço de ouro que sempre o abrigara e ainda estava ali para o que precisasse. Achava muito mais graça e dignidade nas pequenas glórias que Davi experimentava diariamente; aquilo sim era felicidade! Aquela simplicidade nobre, o respeito com que o tratavam, o carinho das amigas, a atenção dos professores. Por que Guilherme não podia ter um pouco disso?

Num dia qualquer, Davi adentrou a sala de aula com a cabeça totalmente raspada e sorridente cumprimentou a todos. Estava com um tumor na cabeça. Assim que se inteirou dos fatos, Guilherme teve uma crise nervosa e saiu da sala de aula aos prantos. Respirava ofegante e seus lábios tremiam. Não era a doença de Davi que o afligia, tampouco estava perplexo ao ver alguém tão "do bem" acometido por uma moléstia dessas. O que incomodava Guilherme era sua abundante saúde! Queria estar no lugar do colega, desejava para si aquele câncer e todas as suas implicações! E não, não se tratava de piedade ou bravura... Desde que a admiração das pessoas acompanhasse sua enfermidade, Guilherme não pensaria meia vez, ele adoeceria!

O rapaz já não suportava mais continuar fadado às suas amarras, ao seu desgoverno interior, sua artificialidade constante. Via-se passando pela vida sem se conhecer, sem saber quem era e a que vinha. E tudo poderia ser tão mais simples, tão menos custoso. Mas suas estratégias...

Nem é preciso dizer que a namorada de Davi sequer meneou a cabeça para assistir à elaborada careta que Guilherme fez ao se toparem. Passou por ele como se o coitado não existisse. E talvez ela nem estivesse de todo errada por assim pensar. Afinal, o que seria existir naquelas doentias circunstâncias?

10 comentários:

Ciro disse...

Felipe, há tempos não lia um texto seu tão bacana quanto esse. E está sua cara, principalmente quando nos deparamos com o baque do tumor! Hahahahhaha!! Vc gosta disso, né? Deveria explorar mais isso! Essa coisa de histórias com baques tão fortes.

Só não entendi um tal de "Danilo" no meio do texto, mas o resto está excelente!!

Bem vindo de volta!
Abraço!

Ciro disse...

Hum... vc já corrigiu o Danilo. Retiro o q eu disse, heheheh!!!

Mais uma vez, bem vindo de volta!

Felipe Carvalho disse...

Hahahahahahahhahaha

Valeu, Cirão!!! Realmente escapuliu um "Danilo" aí no meio! Ele veio só para "danar" tudo mesmo! hehehe Na verdade era o próprio Guilherme, mas já corrigi! ;)

Grande abraço!

Carlos Filho disse...

Então quer dizer que Guilherme queria ser Davi e tb Danilo? hahahahahahaha

Sessyllya ayllysseS disse...

Felipe, o que torna mais triste o caso do Guilherme é que ele está ciente de sua falta de identidade: quem sofre com lucidez sente muito mais dor. Guilherme, com a possibilidade de perder a grandeza de Davi - a que recorria para preencher seu vazio interior - se vê imerso nesse próprio vazio.

O tema "crise de identidade" é bastante recorrente em seus textos e, a cada um deles, é tratado de maneira mais brilhante e cuidadosa! Penso que o profissional (no bom sentido) é você... Sempre fico ansiosa para visitar o blog no sábado, porque me identifico demais com o seu estilo - você sabe disso. Aliás, aproveito a oportunidade para me desculpar por ter postado o meu texto antes do dia... rsrsrs...

Muitos parabéns!!!
Bjinhos!!!

Anônimo disse...

Ah bão!!!!!! Finalmente essa de sabado chego......JaH tava saindo du blogue......

Rafael disse...

muito bom mesmo felipao seu estilo é mesmo inconfudivel assim como a sissa falou da perda de identidades e o logicamente os baques que vc gosta tanto vc poderia fazer bons filmes de drama com esses baques hehehe
ate mais abraço

Pietro disse...

Ah...

que cara paga pau

Graças a Deus não tenho uma mala dessas na minha vida

uhsauhsahusa

xD

Bruno Carvalho disse...

Fenomenal!
Isso é a sua cara! O seu estilo! As palavras, o humor (deveras original), o fato de você sacar e escrever os modos das pessoas, do mundo...
Isso é Felipe! Por ele mesmo!

meus sinceros Parabéns cara!
Muito bom meeeeeeeeeeessmo!!!

Abraços!

Vassago disse...

Felipíssimo amigo...
Ontem mesmo comentei com a Céci sobre a beleza deste texto. Só naum tinha tido tempo de vir aki deixar registrado. É uma dakeles textos bem vassaguistas,o qual, no melhor sentido que pode haver, gostaria eu de ter escrito...
Mas suas mãos certamente foram mais competentes em dar esse contorno todo especial à narrativa.
Parabéns sempre!
Abrç grande!
Desculpe-me pela demora, mas ando meio assoberbado de coisas pra fzer!
Mas sempre q tem um tempinho venho aki!
Abrç grande!!!